terça-feira, 15 de março de 2011

O silêncio internacional diante das ditaduras


Por que o insuportável silêncio internacional diante das legítimas rebeliões de populações que exigem liberdade, dignidade econômica e pessoal e democracia? Por que se tem tolerado durante décadas os abusos aos direitos humanos das ditaduras aliadas do Ocidente que têm gerado a atual revolução que percorre o mundo árabe, desde Marrocos até a Arábia Saudita? O que explicava as visitas de Estado a regimes ditatoriais e cleptocracias, os abraços e beijos com os autocratas árabes, as bênçãos a sistemas de governo em desacordo com a legalidade? O artigo é de Mônica G. Prieto. Mónica G. Prieto - Periodismo Humano

“É a economia, estúpido!”. A famosa frase de James Carville, assessor de Bill Clinton durante a campanha eleitoral que o levou à Casa Branca em 1992, serve para responder as perguntas que muitos fazem. Por que o insuportável silêncio internacional diante das legítimas rebeliões de populações que exigem liberdade, dignidade econômica e pessoal e democracia? Por que se tem tolerado durante décadas os abusos aos direitos humanos das ditaduras aliadas do Ocidente que têm gerado a atual revolução que percorre o mundo árabe, desde Marrocos até a Arábia Saudita? O que explicava as visitas de Estado a regimes ditatoriais e cleptocracias, os abraços e beijos com os autocratas árabes, as bênçãos a sistemas de governo em desacordo com a legalidade? A resposta são bilhões de dólares e uma estabilidade regional que tem beneficiado a Europa e os Estados Unidos e seu principal aliado regional, Israel, em troca da insegurança das populações árabes.

O mérito dos manifestantes árabes que estão colocando em sérios apertos, quando não derrubando, seus regimes é enorme. Não só enfrentam um aparato de segurança repressor - o que os condena, em caso de fracasso, a serem perseguidos e provavelmente massacrados - mas também ao mundo inteiro desde o momento em que os ditadores contra quem se levantam estão ligados com o resto dos países mediante vínculos difíceis de se quebrar: contratos comerciais que não entendem de ideologia nem de moral.

Essa é a razão pela qual os documentos das ONG denunciando torturas, repressão, ausência de liberdades e eleições arranjadas nunca produziram a mais mínima sombra sobre os regimes amigos: Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Egito, Emirados Árabes, o atual Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbia, Mauritânia, Omã, Qatar, Tunísia, Iêmen, Sudão, Marrocos… De fato, consultando os informes redigidos pelos escritórios comerciais espanhóis nos citados países ninguém desconfiaria da legitimidade dos regimes e, sobretudo, ninguém duvidaria dos proveitosos negócios que trazem aos Estados Unidos ou à Europa. À custa, isso sim, dos excessos que se cometem contra suas populações. Este é um resumo do que queriam ver nossos governos no Oriente Médio e no norte da África e do que viam seus cidadãos, pelo qual estão se levantando em massa contra seus ditadores.

Arábia Saudita: Com uma economia dependente da exportação de petróleo, a Arábia Saudita depende das exportações exteriores dada sua escassa produtividade em qualquer outro setor. Uma circunstância bem aproveitada por seus sócios internacionais. Entre seus principais provedores figuram Estados Unidos (com negócios avaliados em mais de 13,6 bilhões de dólares em 2009), ou China (10,8 bilhões no mesmo ano) e de forma mais modesta França (3,8 bilhões), Itália (3,5 bilhões) e Grã Bretanha (3,4 bilhões). Espanha figura entre os 10 principais países clientes com negócios no valor de quase 3,4 bilhões de dólares em 2009.

Assim mesmo, em novembro passado negociava a venda de 200 carros de combate que deveria lhe render 3 bilhões de euros, o maior contrato da indústria armamentista espanhola. Para que serviriam esses carros? As últimas atuações conhecidas do Exército da Arábia Saudita, um regime wahabi (a versão mais radical do Islamismo sunita, que implica a segregação absoluta de sexos e relega as mulheres a uma condição de segunda classe) cuja fonte de jurisprudência é a Sharia (código de leis do islamismo), tem tido como cenário Bahrein e Iêmen No primeiro, ativistas do reino denunciaram a entrada de militares sauditas para apoiar a monarquia na repressão das manifestações; no segundo aconteceu há alguns meses, quando o Exército saudita atacou posições dos huthis, rebeldes xiitas armados situados na fronteira entre Iêmen e Arábia Saudita, em um ataque sectário.

No país da dinastia dos Saud, não só a pena de morte está vigente (que se realiza por decapitação e está aumentando, segundo as autoridades locais porque o crime tem crescido) mas também aplicam-se castigos corporais: as amputações de mãos e pés por roubo ou a flagelação por delitos menores como “desvio sexual” - em referência à homossexualidade e a sodomia - e a embriaguez. A discriminação das mulheres, que carecem dos mínimos direitos - sua situação é muito mais grave que no Afeganistão - chega inclusive às suas próprias casas. Não têm direito de votar nem de dirigir, nem sequer podem caminhar sozinhas sem um homem que lhes acompanhe. Não há liberdade de culto, tampouco liberdades sexuais nem liberdade de reunião, imprensa ou de expressão. Os sindicatos estão proibidos, assim como os partidos políticos. Tal como seus sócios europeus, a Espanha parece importar-se pouco com semelhantes minúcias. Entre 1993 e 2008, segundo dados do Ministério da Indústria, Turismo e Comércio, a Arábia Saudita investiu na Espanha mais de 70 milhões de euros. Os habitantes da Arábia Saudita estão convocados a protestos nos dias 11 e 20 de março.

Argélia - Como no caso de Marrocos e Mauritânia, na Argélia - grande produtor de gás - a Espanha tem amplos acordos de cooperação que incidem positivamente em seus negócios. O governo de Madri é o quarto país provedor, depois da França (6,1 bilhões de dólares), China (4,7) e Itália (3,7), com importações no valor de quase 3 bilhões de dólares anuais. Em troca, Espanha importa gás argelino no valor de 3,9 bilhões de euros ao ano, sendo o terceiro país cliente do regime argelino. Entre suas exportações figuram aeronaves no valor de meio milhão de euros.

Enquanto os governantes trocam apertos de mão, o estado de emergência que impera no país durante 19 anos tem justificado detenções irregulares, processos judiciais duvidosos, desaparições forçadas, torturas, abusos policiais e restrições à liberdade de expressão, de impressa e civis. Desde 1993, estima-se entre 30 e 40 mil o número de desaparecidos. Os argelinos protestam contra seu governo desde dezembro de 2010 e exigem medidas contra o desemprego, a falta de moradia, a inflação, a corrupção, a falta de liberdades. Sua primeira vitória: a anulação do estado de emergência que justificava as detenções irregulares de milhares de pessoas há décadas.

Bahrein - Este pequeno reino petrolífero povoado por quase 70% de xiitas e governado por uma dinastia sunita há dois séculos é um sócio comercial privilegiado da Arábia Saudita - daí seu enorme apoio à monarquia bareinita, baseado em interesse econômico e estratégico porque à Riad, capital saudita, não interessa uma revolta popular que produza ideias dentro do reino wahabita - mas também do Japão, Estados Unidos e Alemanha, nesta ordem. Em troca, Bahrein exporta petróleo. Sua população xiita, enquanto isso, suporta uma discriminação dos sunitas que alcança todas as esferas: não podem aceder a postos públicos nem ingressar no Exército, denunciam que só podem morar nas piores moradias e cada vez tem sido público que são reprimidos. As torturas são habituais nas prisões como em outros países do Golfo Pérsico, assim como a prisão arbitrária de dissidentes políticos. Segundo os ativistas, há cerca de 400 presos políticos nas prisões do país. O país não chega a um milhão de habitantes. As manifestações, reprimidas a sangue e fogo, têm conseguido até o momento a libertação de presos políticos e promessas de reformas democráticas.

Egito - Durante os 18 dias que durou a revolução popular que culminou na saída de Hosni Mubarak, apenas escutaram-se críticas europeias e as escassas proferidas pelos Estados Unidos soaram tímidas. Examinemos por quê: o primeiro sócio comercial do Egito é a União Europeia, que exportou bens no valor de quase 18 bilhões de euros em 2009. Dos países europeus, Itália, Alemanha, França e Reino Unido ocupavam os primeiros postos. Espanha é o sexto exportador do país dos faraós. Estados Unidos, contudo, é a terceira potência exportadora com negócios no valor de 5,3 bilhões de dólares no em 2009. Os informes das ONG não poderiam competir com semelhante volume de negócios, muitas vezes falaram de torturas recorrentes, detenções arbitrárias, violações em prisão para obter confissões e uma total impunidade policial. No entanto, milhões de egípcios venceram seu medo e saíram às ruas derrubando a ditadura e fazendo história. Um dos ativistas que fizeram os protestos, Wael Ghonim, alçava uma mensagem incontestável ao Ocidente depois de seu êxito: “Vocês não se meteram em 30 anos. Por favor, não se metam agora”.

Emirados Árabes Unidos (EAU) - O presidente José Luis Rodríguez Zapareto regressou de seu giro pelo Golfo eufórico pelos acordos econômicos firmados com os xeiques dos Emirados, mas sem mencionar as violações de direitos humanos. Em EAU - rico em gás e petróleo - a Espanha firmou negócios no valor de 1,9 bilhão de dólares somando-se assim a países como China, Estados Unidos, Alemanha e Índia, seus principais sócios comerciais. A ninguém incomoda que nos sete emirados a maioria da população (estima-se que 80%) seja de trabalhadores asiáticos que carecem de direitos, muitos dos quais são explorados e vivem em condições sub-humanas. As organizações defensoras de direitos humanos denunciam a falta de proteção e a discriminação que padecem. Além disso, nos emirados as instituições não são eleitas de forma democrática, e a liberdade de expressão e de imprensa passam por numerosas dificuldades.

Iêmen - Os protestos duram já dois meses e são diários: dezenas de milhares de iemenitas desafiam a cada dia o emprego da segurança e também os fiéis ao ditador Abdula Ali Saleh, há 32 anos no poder, para exigir o fim da ditadura. As primeiras concessões não tardaram a aparecer ante a pressão popular: Saleh renunciou à reforma constitucional que preparava para permanecer no posto de forma vitalícia, logo após renunciou a que seu filho o sucedesse, depois anunciou que não renovaria seu mandato após 2013, quando este expirará oficialmente, e agora oferece um governo de unidade nacional que a oposição e ativistas rechaçam. O ditador está cada dia mais só: sua tribo, assim como outros clãs determinantes do país mais pobre do Oriente Médio, retirou o apoio que dava a ele. O principal religioso iemenita, Abdul Majid al Zindani, uniu-se aos manifestantes, que exigem sua saída imediata e a instauração de uma democracia. Sua riqueza também reside nos hidrocarbonetos e seus principais parceiros comerciais são China, Índia, Emirados e Estados Unidos, com quem mantinha estreitas relações militares que permitiram bombardeios secretos norteamericanos contra supostos objetivos da Al Qaeda que se atribuem ao próprio Saleh, segundo desvendado mediante informes do Wikileaks. Em matéria de direitos humanos, as torturas, a repressão, a falta de liberdades, a detenção arbitrária de dissidentes e a colaboração com o programa de detenções extraordinárias norteamericano - o sequestro de cidadãos que são interrogados em países terceiros para permitir o uso de torturas na obtenção de confissões - é algo habitual. Estima-se que cerca de 30 pessoas morreram nas manifestações.

Kuwait - Enquanto o primeiro-ministro espanhol, José Luis Zapatero, passeava pelos Emirados e Qatar, o rei Juan Carlos apertava a mão do Sheik Sabah al Ahmad al Jaber, o emir do Kuwait, uma monarquia supostamente constitucionalista onde o primeiro ministro é o sobrinho de Al Jaber e onde este elege a composição do governo. Seus familiares ocupam os principais postos do poder. Não existem partidos políticos ainda que se tolerem organizações ideológicas no Parlamento eleito, que pode ser dissolvido - como já ocorreu em cinco ocasiões - por desejo do emir. Estados Unidos, Japão, Alemanha e China são seus principais sócios comerciais; os hidrocarbonetos seu grande ativo. Com Washington tem uma relação principal que explica a existência de bases norteamericanas em território kuwaitiano. Suficiente para que ninguém levante a voz por causa das violações de direitos humanos como as citadas pela Anistia Internacional em seu informe de 2009. “Os trabalhadores e trabalhadoras migrantes continuam sofrendo exploração e abusos e exigiam proteção de seus direitos. Em alguns casos houve expulsão por ter participado de manifestações massivas. O governo prometeu melhorar suas condições. Processaram jornalistas. Denunciou-se um caso de tortura. Havia ao menos 12 pessoas condenadas à morte, mas não se teve notícia de nenhuma execução”. Os protestos no Kuwait, muito menores, têm gerado dezenas de feridos. O último protesto foi realizado na terça-feira (8), centenas de kuwaitianos exigiram a queda do primeiro-ministro e maior liberdade política.

Líbia - Petróleo e gás. Desde que Muammar al Kadafi foi desclassificado como líder terrorista em 2002 e acrescentado à categoria de sócio ocidental, os negócios com a ditadura líbia - 40 anos de tirania - dispararam, ignorando a repressão interna e a ausência total de democracia. Kadafi acabava sendo demasiadamente generoso para ser questionado quando investia 2 bilhões de dólares no Canadá ou 30 bilhões nos Estados Unidos. Agora, o uso de aviação militar contra manifestantes que exigem o final da tirania obriga os dirigentes internacionais a opor-se. Itália e Alemanha são seus grandes sócios comerciais, Espanha é o terceiro país cliente: importa principalmente petróleo e gás. Entre 1993 e março de 2008, investiu 189,36 milhões de euros na Líbia. As exportações espanholas em material de defesa aumentaram 7.700% em 2008.

Marrocos - As violações de direitos humanos, principalmente relacionadas com o Sahara Ocidental, nunca vêm à tona - nem sequer nos episódios mais violentos - com o sócio marroquino, muito amigo da Espanha e aliado da União Europeia e Estados Unidos. Entre seus principais parceiros comerciais figuram França, Estados Unidos, Suécia, Alemanha e Espanha. Assim como com a Argélia e Mauritânia, Madri mantém amplos acordos de cooperação com Rabat, capital do Marrocos, que incluem a venda de armas e material defensivo. Estima-se que a Espanha é o principal país provedor do reino alauí - dinastia que governa o país - depois da França e seu mercado representa a principal fonte de exportações espanholas de toda a África. Em 2009, Marrocos recebeu 30 milhões de euros em veículos militares espanhóis. O regime de Rabat foi inicialmente compreensivo com os manifestantes, que no dia 20 de fevereiro saíram às ruas para exigir reformas democráticas e econômicas, para depois atuar com contundência diante de qualquer indício de protesto.

Omã - Nesta monarquia absoluta, sem partidos políticos, e cujo sultão, Qabus al Said, derrubou seu pai em um golpe de Estado em 1970, os hidrocarbonetos são a chave de suas excelentes relações internacionais. Emirados, Índia, Estados Unidos e China são seus principais sócios comerciais, e em menor medida a Espanha, que entre 1993 e 2008 investiu 38 milhões de euros na economia do sultanato, Segundo a ONG Frontline, os ativistas de direitos humanos em Omã “sofrem perseguição, detenção arbitrária e torturas ao serem interrogados. Centenas de acadêmicos, jornalistas e comentaristas foram detidos em prisões massivas e deixados incomunicáveis sem nenhum tipo de assistência legal. Omã é signatário de três dos sete tratados fundamentais das Nações Unidas sobre os direitos humanos. As organizações independentes de direitos humanos não podem operar dentro do país”. Os protestos em Omã resultaram na morte de duas pessoas e exigem respeito aos direitos humanos, reformas políticas e econômicas que lutem contra a inflação e aumentem os salários e liberdade de informação.

Qatar - Outro dos destinos do primeiro-ministro espanhol, José Luis Zapatero, que deu importantes frutos econômicos, com contratos acertados em 3 bilhões de euros - mais de 2,7 bilhões correspondem a investimentos em uma empresa energética e outra de telecomunicações e 300 milhões a uma caixa de poupança - e um dos poucos países a salvo, até o momento, dos protestos. Antecipando-se a qualquer contestação interna, o regime do Qatar - uma monarquia tradicional onde todas as decisões recaem na dinastia reinante - acaba de adiantar as eleições municipais, um passo a mais no lento processo de reformas iniciado pelo xeique Hamad ben Jalifa al Thani. Mantém excelentes relações com todos os grupos, com o Ocidente, com o mundo árabe e com o Irã, o que o tem feito mediador por excelência na região. Japão, Estados Unidos, Alemanha e Itália são seus principais países provedores, e a Espanha, seu sétimo país cliente. Em matéria de direitos humanos, as restrições à liberdade de expressão - apesar de haver criado a Al Jazeera - são frequentes, os ativistas são habitualmente perseguidos, a Internet é vigiada e há acusações contra o regime de Al Thai por não garantir os direitos mínimos dos trabalhadores estrangeiros. Não existem partidos políticos. Os qatari estão sendo convocados para uma manifestação ainda no mês de março.

Tunísia - Os 20 anos no poder de Ben Ali lhe deram o domínio sobre a economia tunisiana e criaram vínculos com a França, Itália, Alemanha e Estados Unidos, entre outros países ocidentais, na forma de contratos. A cleptocracia foi derrubada pelo movimento popular revolucionário que explodiu depois da morte de um jovem provinciano estendendo-se por todo o norte da África e o Oriente Médio. Os motivos econômicos - o grande desemprego, a alta dos preços, a escassez de moradia - combinaram-se com uma população educada e cansada da corrupção do regime, mas, como no resto dos protestos, as violações de direitos humanos, desde a repressão policial até a discriminação ou a falta de liberdades, também desempenharam um papel.

Tradução: Michelle Amaral (Brasil de Fato)

Fonte: CARTA MAIOR - 15/03/11

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