sexta-feira, 26 de outubro de 2012

STF - ESPETÁCULO SEM JUÍZO

Contaminação do julgamento por politicagem e atitudes contraditórias de membros do STF causam reações entre setores da sociedade preocupados com a democracia



Já era esperado que os principais veículos da mídia tradicional mantivessem o julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, nas manchetes e buscassem “orientar” o voto dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Imaginava-se que parte dos ministros, até mesmo a maioria, pudesse acatar a versão da acusação e condenasse alguns réus, mesmo sem a existência de provas concretas nos autos.
No show midiático, Barbosa (acima), é o herói, e Lewandowski (abaixo) o vilão. A vítima é a Justiça. Fotos: Antonio Cruz/ABr e JosÉ Cruz/ABr/abr
Surpreendente, no entanto, foi a combinação do tradicional viés anti-PT da mídia conservadora com a postura acusatória assumida pela relatoria do processo. Além de derrotado em plenário pela maioria do colegiado, o contraponto à relatoria pelo revisor do processo sofreu um visceral repúdio dos principais veículos de comunicação. O revisor, Ricardo Lewandowski, virou vilão e o relator, Joaquim Barbosa herói.
O professor de Ciência Política da Fundação Getulio Vargas (FGV) Francisco Fonseca afirma que “a mídia no Brasil tem um longo histórico partidário” e não é uma novidade a tentativa de influenciar o resultado de uma eleição. Dessa vez, no entanto, a postura do STF trouxe um novo elemento ao já tradicional cenário: “O STF, ao deixar o julgamento de José Dirceu e do núcleo político para o final, às vésperas da eleição, deu combustível à mídia em sua clara tentativa de construir uma alternativa política e eleitoral. Nesse contexto da vida política nacional, o STF se coloca também de uma forma partidarizada, o que me parece muito perigoso para a democracia institucional.”
Para o sociólogo Venício Artur de Lima, professor da Universidade de Brasília (UnB) e atento observador da mídia brasileira, o comportamento da imprensa tem sido diferenciado desde que a denúncia apareceu: “Na época, houve vários nomes divulgados no Jornal Nacional que não tinham nada a ver com o caso. Há um certo oportunismo. Não tenho condições de afirmar que o calendário do Supremo foi feito em função das eleições, mas, que os grandes grupos de mídia se aproveitam do momento, não há nenhuma dúvida”, diz.
Apesar de um coro dos grandes veículos tentar provocar sensação de consenso na sociedade em torno de sua visão do episódio, a percepção de que os rumos do julgamento foram contaminados por questões políticas causou reações. Um grupo de cerca de 250 intelectuais, juristas, escritores, artistas, jornalistas e sindicalistas, entre outros profissionais – pessoas sérias e com histórico de luta pela democracia –, enviou ao presidente do STF, Carlos Ayres Britto, um documento que pede aos ministros postura equilibrada, em consonância com as leis e o Direito. A reação foi organizada pelo produtor cinematográfico Luiz Carlos Barreto, pelo escritor Fernando Morais, pela filósofa Olgária Matos e pela jornalista Hildegard Angel.
“Somos contra a transformação do julgamento em espetáculo, sob o risco de se exigir – e alcançar – condenações por uma falsa e forçada exemplaridade. Repudiamos o linchamento público e defendemos a presunção de inocência”, diz o documento, assinado ainda por Oscar Niemeyer, Emir Sader, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Eric Nepomuceno, Hugo Carvana e Jorge Mautner, entre outros. Para os signatários, “parte da cobertura da mídia e até mesmo reações públicas que atribuem aos ministros o papel de heróis causam preocupação”.


Sinais de fumaça

Mesmo antes do início do julgamento, membros do STF já situavam o que estava por vir. Em maio, o ministro Gilmar Mendes afirmou em matéria da revista Veja que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentara pressioná-lo a convencer os demais ministros a adiar o julgamento. Mendes, segundo a revista, afirmou que Lula “não fez o pedido diretamente”, mas “manifestou um desejo”. A matéria resultou em um pedido de abertura de investigações apresentado ao Ministério Público Federal por PSDB, DEM, PPS e PSOL. Chamado pelo MPF para confirmar a reportagem, Mendes não confirmou nada. O caso acabou arquivado pela Justiça, mas causou impacto político ao trazer Lula ao centro do “palco”.
Já com o julgamento em andamento, outra reportagem de Veja atribuiu ao publicitário Marcos Valério afirmações que imputam a Lula participação direta no mensalão. Atingir sua imagem seria uma forma de abalar seu poder de influência nas eleições. O ex-presidente é o maior símbolo de um modo de governar que deu ao Brasil rumos completamente diferentes após 2002 e deixou o governo, em 2011, com aprovação jamais vista. A revista foi novamente desmentida.
A tentativa provocou uma reação de toda a base aliada ao governo Dilma. Uma nota divulgada em 20 de setembro pelos presidentes partidários Rui Falcão (PT), Eduardo Campos (PSB), Renato Rabelo (PCdoB), Valdir Raupp (PMDB), Carlos Lupi (PDT) e Marcos Pereira (PRB) assinalou que a imprensa oposicionista e os setores a quem dá voz “não hesitam em golpear a democracia” sempre que seus interesses são contrariados: “O gesto é fruto do desespero diante das derrotas seguidamente infligidas a eles pelo eleitorado brasileiro”. As centrais sindicais, em manifestação, retomaram o bordão “Lula é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”, já usado na mobilização social que deu sustentação ao presidente em 2005 – quando a oposição liderada por Fernando Henrique Cardoso pretendia vê-lo “sangrar” e ter sua reeleição inviabilizada.


Calendário

As críticas à politização do julgamento cresceram depois que ficou claro que o cronograma apresentado pelo relator levaria a apreciação dos casos de José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares às vésperas das eleições municipais. O presidente do STF, Carlos Ayres Britto, negou haver coincidência premeditada. “Os ministros nunca fizeram esse tipo de conexão. Não há pressa, os ministros estão conciliando em seus votos segurança jurídica com presteza na entrega da prestação jurisdicional”, disse.
Alguns analistas consideram que a postura assumida no julgamento do mensalão pela maioria do STF atenta contra a credibilidade da mais alta corte do país. “O Supremo Tribunal Federal tem cometido equívocos e agido de maneira inadequada, de forma a comprometer a sua própria autoridade. Muitas vezes, ministros antecipam a veículos o que vão dizer no plenário”, alertou o jurista e professor da USP Dalmo Dallari em entrevista a Conceição Lemes no site Vi o Mundo.
Outra crítica diz respeito à adoção, por parte da maioria do STF, de um critério claramente subjetivo na interpretação de fatos que compõem o processo. Esse critério permitiu ao relator, por exemplo, enquadrar a aprovação das reformas tributária e previdenciária pelo Congresso no conceito de “ato de ofício”, necessário para caracterizar o crime de corrupção na suposta compra de votos dos deputados. A ilação é frágil. O deputado Valdemar Costa Neto (então presidente do PL-SP e um dos condenados por “venda” de apoio), para ficar no exemplo mais famoso, votou contra a reforma da Previdência.
“A condenação de vários réus nesse processo levará necessariamente a um levantamento das leis aprovadas no Congresso Nacional no período em que o Supremo está dizendo que houve compra de votos”, afirma Venício Lima. “O presidente do Supremo disse com todas as letras, repetidas vezes, que o Projeto de Lei
nº 2.232, que regula as licitações de verbas públicas para publicidade, tinha sido alterado no Congresso exclusivamente para beneficiar os réus da Ação Penal 470. De acordo com o que ele disse, a lei é inconstitucional.”


Pesos e medidas

Passado o julgamento, fica a expectativa se o mesmo peso e a mesma medida serão utilizados pela Justiça na apreciação de casos de pouco destaque na mídia conservadora. O mais importante é o mensalão do PSDB, quando entraram em cena os métodos de Marcos Valério de arrecadar dinheiro para o caixa de campanha de Eduardo Azeredo, então presidente nacional do PSDB, ao governo de Minas Gerais, em 1998.
A título de comparação, a Justiça Federal de Goiás decidiu pela absolvição dos tucanos José Serra (então ministro da Saúde) e Marconi Perillo (então governador) da acusação de improbidade administrativa quando, em 2001 e 2002, verbas federais para o combate à dengue destinadas à Secretaria de Saúde de Goiás foram parar nas contas das empresas de Valério. A juíza que analisou o caso alegou que o Ministério Público não produziu provas suficientes contra os réus. A decisão se choca com a nova jurisprudência criada no STF, que se baseou somente em indícios e testemunhos para condenar.
Joaquim Barbosa também era relator do processo do mensalão do PSDB. Mas, alegando que assumirá em novembro a presidência do STF, decidiu abrir mão de todos os processos dos quais é relator que não estejam prontos para voto.
A relação de Valério com outros mensalões foi lembrada no plenário do STF pelo juiz revisor Ricardo Lewandowski quando este analisava a já célebre viagem que o empresário fez a Portugal acompanhado pelo tesoureiro do PTB, Émerson Palmieri: “Essa viagem está relacionada a outro esquema que precede este que estamos analisando agora. Envolve o Banco Opportunity e Daniel Dantas e abasteceu outros mensalões anteriores, em outras unidades da federação”.
Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, o relator Joaquim Barbosa é questionado se a “máquina de investigação e punição só funcionou para este caso e será desligada”, já que só o processo do mensalão do PT chegou ao final, em meio a tantos escândalos que envolvem outros partidos. Barbosa diz não acreditar nisso: “Haverá uma vigilância e uma cobrança maior do Supremo. Este julgamento tem potencial para proporcionar mudanças de cultura, política, jurídica. Alguma mudança certamente virá”.
O cientista político Paulo Vannuchi reflete o anseio por equidade de tratamento que hoje é compartilhado por partidos políticos, movimentos sociais e entidades sindicais: “Vem aí o julgamento do Daniel Dantas. Vamos ver como ficará o STF se não aplicar também o conceito do ‘domínio do fato’, entre outros agora aplicados.”
No mesmo fim de semana do primeiro turno das eleições municipais, a revista Veja trouxe como reportagem de capa um perfil de Barbosa, atribuindo-lhe o título de “o menino pobre que mudou o Brasil”, em mais uma tentativa de influenciar as decisões dos brasileiros nas urnas. Não é improvável que surta algum efeito à campanha da revista – aquela que ainda está por ser investigada por suspeita de associação ao contraventor Carlos Cachoeira para fabricar informações úteis a interesses de ambos. Pelo menos entre aqueles 5% da população que preferem o Brasil como era de 2002 para trás. Porque para os outros 95% que aplaudem o legado de outro menino pobre que governou o país, em detrimento de todas as batalhas do partido da mídia, o conceito de mudança parece ser um tanto mais amplo. ]

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